Professor/a: profissão de risco?1 Vera Maria Candau
Rio de Janeiro, Brasil
O magistério foi
considerado durante muito tempo como uma profissão muito valorizada
socialmente, de prestígio e reconhecimento pelo seu potencial humanizador e seu compromisso com a formação
para a cidadania. Em geral, esta valorização não era acompanhada de condições de trabalho muito favoráveis.
O salário dos professores e professoras era módico e os
estímulos para o
desenvolvimento profissional escassos.
No entanto, isto não impedia que o magistério fosse visto e vivido como uma profissão que
valia a pena por sua
importância intelectual, ética e social.
Esta não é a situação que vemos hoje. Junto às condições de trabalho precárias que
a grande maioria dos/as professores/as vive, é possível detectar um crescente mal-estar
entre os profissionais da educação. Insegurança, stress, angústia parecem
cada vez mais
acompanhar o dia a dia dos docentes. Além disso, sua autoridade intelectual e preparação
profissional é frequentemente questionada e as múltiplas manifestações de
indisciplina e
violência no cotidiano escolar se intensificam, assim como as pressões sociais se fazem
cada vez mais fortes e as escolas, públicas e privadas, não conseguem responder
adequadamente às novas demandas.
Por outro lado, o impacto das tecnologias da
informação e
da comunicação sobre os
processos de ensino-aprendizagem obrigam os/as
educadores/as a buscar novas estratégias pedagógicas e os sujeitos da educação, crianças
e adolescentes,
apresentam configurações identitárias e subjetividades fluidas que escapam à compreensão dos professores
e professoras. Diante deste quadro
muitos/as evadem
da profissão e procuram
caminhos mais tranqüilos, gratificantes
e seguros de exercício profissional.
Ser professor/a hoje se vem transformando em uma atividade de risco que desafia
nossa resistência,
saúde
e
equilíbrio
emocional, capacidade de enfrentar conflitos
e
construir experiências pedagógicas significativas cada dia.

ENTRE SABERES E CULTURAS: O QUE ENSINAR?
Esta pergunta, aparentemente simples, é na atualidade extremamente desafiadora
para nós, professores e professoras. A
identidade docente tem estado fortemente ancorada, especialmente a partir do segundo segmento
do ensino fundamental, no
domínio de um conhecimento
específico do qual o/a professor/a é considerado/a
especialista. A posse deste chamado "conteúdo" não é colocada em questão. Este saber,
oriundo do campo científico de referência, dá ao docente
segurança e convicção de que possui um patrimônio, que lhe é próprio, que lhe corresponde socializar. Este
conhecimento foi adquirido ao longo de vários anos de formação
universitária e pertence aos "iniciados"
em cada área específica do conhecimento considerado científico. Por outro lado, existem bons livros didáticos que "pedagogizam" estes "conteúdos" aos diferentes níveis de ensino.
Confiantes no nosso saber, formação e nos materiais de apoio selecionados nos é possível, esta é nossa crença, desenvolver com tranqüilidade e competência nossa atividade docente
diária.
Esta era/é
a
visão dominante
mas
a
reflexão
pedagógica
em geral
e,
mais especificamente, a teoria curricular, nos últimos anos vem questionando fortemente esta
concepção do conhecimento escolar. Este passa a ser concebido como uma construção
específica
do contexto
educacional, em que o cruzamento entre diferentes saberes, cotidianos e/ou sociais e científicos, referenciados a universos
culturais plurais, se dá no
cotidiano escolar em processos de diálogo
e confronto, permeados por relações de poder.
O conhecimento escolar não é concebido como um "dado" inquestionável e "neutro", a partir
do qual nós, professores/as configuramos nosso ensino. Trata-se de uma construção
permeada por relações sociais e culturais,
processos complexos de "transposição"/
"recontextualização" didática e
dinâmicas que
têm
de ser ressignificadas continuamente.
O que ensinar? Como favorecer
aprendizagens significativas? Estas perguntas, mais
ou menos
óbvias
e
tranquilas em outros
tempos passam, hoje, a ser questões
desestabilizadoras
e instigantes, que admitem respostas múltiplas, segundo as concepções
epistemológicas e
educativas que informem nossas práticas pedagógicas cotidianas.
NOSSOS
ALUNOS E ALUNAS: IDENTIDADES PLURAIS E FLUIDAS QUE NOS ESCAPAM A CADA MOMENTO?
Outra questão
que informa a
prática docente diz respeito à caracterização de nossos alunos e alunas. Durante muito tempo nos pautamos em nosso dia-a-dia por uma visão do
que se convencionou chamar de "aluno médio",
certamente uma abstração mas que constituía uma referência para a docência. De onde veio esta construção? Acredito que se
possa afirmar que está baseada numa simplificação de textos de psicologia do
desenvolvimento e de psicologia da educação em que são apresentadas as principais
características de diferentes etapas da
vida, no nosso
caso das fases da
infância, da pré- adolescência e da adolescência. Muitas vezes destacasse elementos que favorecem
uma
visão homogeneizadora, que tendem a descrever de modo uniforme os/as alunos/as. Tendemos a assumir esta visão uniforme destes personagens e a adequar nosso ensino a ela.
Basta entrar em uma sala de aula do ensino fundamental com um olhar sensível às
diferenças, para que se evidencia a inadequação desta perspectiva. As crianças e adolescentes "explodem" este modo de encará-los. Apresentam formas de expressar-se, comportar-se, situar-se diante de distintas
situações que questionam nossas formas
habituais, socialmente construídas,
de lidar com elas. Diferenças de gênero,
físico- sensoriais, étnicas, religiosas,
de contextos sociais de referência, de orientação sexual, entre outras, se visibizam e expressam nos diversos
cenários escolares.
Os educadores e educadoras nos manifestamos muitas vezes desconcertados com nossos
alunos e alunas, diante desta explosão das diferenças.
Tendemos, com freqüência, a encará-la negativamente, "já não se fazem alunos como antigamente".... afirmamos,
explicita ou implicitamente. Os/as alunos/as - verdadeiros "alienígenas"?- estão
exigindo de
nós, educadores/as - ou será que somos nós os/as
"alienígenas"? - , novas formas de
reconhecimento de suas alteridades,
de atuar, negociar, dialogar, propor
e criar. Estamos desafiados a
superar uma visão padronizadora,
assim como um olhar impregnado por um juízo, em geral, negativo de suas manifestações e maneiras de ser. Trata-se de abrir
espaços que nos permitam compreender estas novas configurações identitárias, plurais e
fluidas, presentes nas
nossas escolas e
na nossa sociedade.
ENTRE O "QUADRONEGRO/ VERDE/BRANCO" E AS TECNOLOGIAS
DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO: QUE DINÂMICA CONSTRUIR NA SALA DE AULA?
Outro
aspecto desestabilizador da prática docente diz respeito ás estratégias
didáticas privilegiadas na sala de aula. O ensino frontal tem sido a perspectiva dominante
nas nossas escolas. Basta entrar em um estabelecimento de ensino que o reconhecemos
pela organização espacial das salas de aula.
O chamado "quadro-negro, verde ou branco" em uma das paredes, as carteiras enfileiradas
diante dele indicando que todos devem olhar para
aquele personagem, nós, professores/as, que, em alguns instantes, entrará para "dar"
a sua
aula. Certamente esta
descrição é caricatural. Nos primeiros anos do ensino fundamental já está sendo superada. No entanto, na segunda etapa do ensino fundamental
e no ensino médio, afirmo,
sem duvidar, ainda impera na grande maioria das
escolas. Certamente de modo matizado em muitas situações, com maior freqüência de exposições dialogadas,
alguns trabalhos em grupos, utilização de filmes, apresentações em powerpoint e utilização de outras mídias que "modernizam"
mas não rompem com o chamado ensino frontal.
É importante
ressaltar
que,
em
algumas escolas,
já se está
trabalhando em uma perspectiva diferente, que se pode chamar de "sala de aula ampliada"(Koff, 2008).[1] Nela
os diferentes espaços escolares - corredores, pátio, biblioteca, laboratório de informática,
etc
- e mesmo espaços fora da escola - ruas, museus, fábricas, empresas, jardins, parques, shoppings, etc - são concebidos como "salas de aula",
na medida em que favorecem processos de aprendizagem e
ensino, tanto de professores/as quanto de alunos/as.
A familiaridade das crianças e adolescentes com as TIC's é cada vez maior. Os
alunos e alunas manifestam intimidade com este mundo, "navegam" com autonomia e,
muitas vezes, nos ensinam, pois nós professores/as - pelo menos os que possuímos mais
anos de magistério -, em geral, nos metemos no mundo das TICs mais lentamente. Esta é uma realidade que vem se impondo cada vez mais.
Como integrar de modo consistente as TICs nos processos
de ensino-aprendizagem? Como utilizá-las na perspectiva de favorecer
processos de construção de conhecimento, análise e reflexão críticas?
Como operar com as múltiplas possibilidades que as TICs oferecem a partir de uma visão reflexiva e crítica de sua utilização tanto no
meio escolar, como na sociedade em geral?
QUE SIGNIFICA CIDADANIA EM SOCIEDADES MARCADAS PELO INDIVIDUALISMO E
A CULTURA DO CONSUMO? QUAL O PAPEL DA ESCOLA NESTA PERSPECTIVA?
Entre os objetivos das escolas, um
dos considerados básicos, constitutivos da
própria configuração da instituição escolar é a formação para a cidadania. Mas, o que
quer dizer esta expressão hoje? Ainda tem sentido afirmá-la? Cidadania, em geral, é uma
categoria referida à consciência de pertença a um estado- nação. Serviu historicamente, me
atreveria a afirmar, para negar e/ou silenciar as diferenças, "Somos
todos brasileiros" é uma
expressão muitas vezes
utilizada
para
não
enfrentar conflitos,
não
reconhecer
desigualdades e discriminações.
Vivemos
em tempos de globalização que, para vários analistas, é um fenômeno pluri-
dimensional que fragiliza os chamados estados-nação. Por
outro lado, nas sociedades
complexas, marcadas por políticas neoliberais e pela centralidade do consumo e do individualismo,
a cidadania
é muitas vezes orientada à
formação de consumidores.
Neste contexto, problematizar a
questão da cidadania constitui
um desafio importante para
nós, educadores e educadoras.
De que cidadania falamos? Que cidadania queremos ajudar a construir? Como ressignificar este conceito que está
relacionado à dimensão publica,
sócio-política e coletiva da vida? Como favorecer
uma cidadania diferenciada, que procura articular
igualdade e diferença?
Muitas são hoje as experiências de voluntariado, os projetos promovidos por organizações
não governamentais e outros atores da sociedade civil que apontam nesta direção e, certamente nós, educadores/as, também estamos chamados
a participar
desta construção de redes
de solidariedade e compromisso social.
Profissão de
risco... Certamente ser professor/a hoje supõe assumir um processo
de desnaturalização da profissão docente, do "ofício de professor/a", e ressignificar saberes,
práticas, atitudes e compromissos cotidianos orientados à promoção de uma educação de
qualidade social e culturalmente plural para todos/as. Mas, não é isto que permite
humanizarmo-nos e humanizar, aprofundar nos
dilemas
do nosso tempo, dilatar horizontes, desafiar, criar?
E,
não são estas as "marcas" da profissão docente? (NA)
[1] Koff, Adélia Maria Nehme Simão e. Escolas, Conhecimentos e Culturas: projetos
de investigação como estratégia teórico-metodológica de reorganização curricular. Tese de doutoramento, Departamento de
Educação da PUC-Rio, 2008.
Referência Bibliográfica:
DIDÁTICA, Leitura Complementar para aula 3, plataforma CEDERJ.
Postado por: Cristina, Joselito, Maria Conceição, Nilzeleia, Regilene e Jailson Brito.
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